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EROS E THANATOS (MARCUSE)

Sob condições não-repressivas, a sexualidade tende a "tornar-se" Eros — quer dizer, à auto-sublimação em relações duradouras e expansivas (incluindo relações de trabalho) que servem para intensificar e ampliar a gratificação instintiva. Eros luta por "eternizar-se" numa ordem permanente. Essa luta encontra a sua primeira resistência no domínio da necessidade. Certo, a escassez e a pobreza predominantes no mundo poderiam ser suficientemente dominadas de modo a permitir a ascendência da liberdade universal, mas esse domínio parece ser autopropulsor — trabalho perpétuo. Todo o progresso tecnológico, a conquista da natureza, a racionalização do homem e da sociedade não eliminaram e não podem eliminar a necessidade de trabalho alienado, a necessidade de trabalhar mecanicamente, desagradavelmente, de um modo que não representa a auto-realização individual.

Contudo, a própria alienação progressiva aumenta o potencial de liberdade: quanto mais externo se tornar ao indivíduo o trabalho necessário, tanto menos este o envolve no domínio da necessidade. Aliviada dos requisitos de dominação, a redução quantitativa de tempo e energia laborais leva a uma mudança qualitativa na existência humana: é o tempo livre, e não o tempo de trabalho, que determina o conteúdo daquela. O cada vez mais amplo domínio da liberdade passa a ser, verdadeiramente, um domínio lúdico — do livre jogo das faculdades individuais. Assim liberadas, essas gerarão novas formas de realização e descobrimento do mundo, o que, por sua vez, remodelará o domínio da necessidade, a luta pela existência. A relação alterada entre os dois domínios da realidade humana altera a relação entre o que é desejável e o que é razoável, entre o instinto e a razão. Com a transformação da sexualidade em Eros, os instintos de vida desenvolvem sua ordem sensual, ao passo que a razão se torna sensual na medida em que abrange e organiza a necessidade em termos de proteção e enriquecimento dos instintos de vida. As raízes da experiência estética reemergem — não apenas numa cultura artística, mas na própria luta pela existência. Ela assume uma nova racionalidade. O caráter repressivo da razão, que distingue o domínio do princípio de desempenho, não pertence ao domínio da necessidade per se. Sob o princípio de desempenho, a gratificação do instinto sexual depende em grande parte da "suspensão" da razão e até da consciência: no breve (legítimo ou furtivo) esquecimento da infelicidade privada e universal; na interrupção da rotina razoável da vida, do dever e dignidade de posição e cargo. A felicidade é quase por definição irrazoável, se for irreprimida e incontrolada. Em contraste, para além do princípio de desempenho, a gratificação do instinto requer um esforço tanto mais consciente de livre racionalidade, quanto menos se tratar de um subproduto da racionalidade de opressão sobreposta. Quanto mais livremente o instinto se desenvolve, tanto mais livremente se afirmará a sua "natureza conservadora". A luta pela gratificação duradoura facilita não só uma ordem mais ampla de relações libidinais ("comunidade"), mas também a perpetuação dessa ordem numa escala superior. O princípio de prazer estende-se até à consciência. Eros redefine a razão em seus próprios termos. O que é razoável é o que sustenta a ordem de gratificação.

No grau em que a luta pela existência se torna cooperação para o livre desenvolvimento e satisfação das necessidades individuais, a razão repressiva dá margem a uma nova racionalidade da gratificação, em que a razão e a felicidade convergem. Cria a sua própria divisão de trabalho, suas próprias prioridades, sua própria hierarquia. A herança histórica do princípio de desempenho é a administração não de homens, mas de coisas: a civilização madura depende, para seu funcionamento, de uma multidão de arranjos coordenados. Esses arranjos, por seu turno, devem comportar uma autoridade reconhecida e reconhecível. As relações hierárquicas não são, "não-livres" per se; a civilização confia, em grande medida, na autoridade racional, baseada no conhecimento e na necessidade, e almejando à proteção e conservação da vida. É essa a autoridade do motorista, do guarda de trânsito, do piloto do avião em vôo. Mais uma vez, devemos aqui recordar a distinção entre repressão e mais-repressão. Se uma criança sente a "necessidade" de atravessar a rua em qualquer momento que lhe apeteça, a repressão dessa "necessidade" não é repressiva das potencialidades humanas. Pode ser o oposto. A necessidade de "relaxamento" nos entretenimentos fornecidos pela indústria da cultura é em si mesma repressiva, e a sua repressão significa um passo para a liberdade. Sempre que a repressão se tornou tão efetiva que, para o reprimido, assume a forma (ilusória) de liberdade, a abolição de tal liberdade prontamente se manifesta como um ato totalitário. Nesse ponto, surge de novo o antigo conflito: a liberdade humana não é apenas uma questão particular — mas não é coisa alguma se não for também uma questão particular. Uma vez que a vida privada não pode continuar a manter-se separada e contra a existência pública, a liberdade do indivíduo e a do todo talvez possam reconciliar-se mediante uma "vontade geral" configurada nas instituições que se dirigem no sentido das necessidades individuais. As renúncias e atrasos exigidos pela vontade geral não devem ser opacos e desumanos; nem sua razão deve ser autoritária. Contudo, a questão permanece: como pode a civilização gerar livremente a liberdade, quando a não-liberdade se tornou parte integrante da engrenagem mental? E, se assim não for, quem está autorizado a estabelecer e impor os padrões objetivos?

De Platão a Rousseau, a única resposta honesta é a idéia de uma ditadura educacional, exercida por aqueles que se supõe terem adquirido o conhecimento do verdadeiro Bem. Depois, essa resposta tornou-se obsoleta: o conhecimento dos meios disponíveis para criar uma existência humana para todos deixou de estar confinado a uma elite privilegiada. Os fatos são todos francamente acessíveis, e a consciência individual alcançá-los-ia com inteira segurança, caso não fosse metodicamente sustada e desviada. A distinção entre autoridade racional e irracional, entre repressão e mais-repressão, pode ser efetuada e verificada pelos próprios indivíduos. O fato deles não poderem fazer essa distinção não significa que não podem aprender a fazê-la, uma vez que lhes seja concedida a oportunidade de o fazer. Então, o curso de tentativa e erro converte-se num curso racional em liberdade. As utopias são suscetíveis de esquematizações irrealistas; as condições para uma livre sociedade não o são. Trata-se de uma questão de razão.

Não é o conflito entre instinto e razão que fornece o mais forte argumento contra a idéia de uma civilização livre, mas, antes, o conflito que o instinto gera em si próprio. Mesmo que as formas destrutivas de sua perversidade e licença polimórficas sejam devidas à mais-repressão e tornem-se suscetíveis de ordem libidinal assim que a mais-repressão for removida, o instinto, propriamente dito, está situado para além do Bem e do Mal, e nenhuma civilização poderá prescindir dessa distinção. O mero fato de que, na escolha de seus objetos, o instinto sexual não é guiado pela reciprocidade, constitui uma fonte de inevitável conflito entre os indivíduos — e um forte argumento contra a possibilidade de sua auto-sublimação. Mas existirá, porventura, no próprio instinto uma barreira íntima que "contém" o seu poder impulsor? Existirá, talvez, uma auto-restrição "natural" em Eros, de modo que sua gratificação genuína reclame um desvio, um retardamento e interrupção? Nesse caso, inexistiriam obstruções e limitações impostas não do exterior, por um princípio de realidade repressivo, mas fixadas e aceitas pelo próprio instinto, visto que possuem um valor libidinal inerente. Com efeito, Freud sugeriu essa noção. Pensou ele que "a liberdade sexual irrestrita, desde o princípio", resulta em falta de plena satisfação:

É fácil mostrar que o valor que a mente atribui às necessidades eróticas se afunda instantaneamente logo que a satisfação se torna facilmente obtenível. Algum obstáculo é necessário para impelir a maré da libido ao seu máximo. 1

Além disso, ele considerou a "estranha" possibilidade de que "alguma coisa na natureza do instinto sexual seja desfavorável à consecução da absoluta gratificação”. 2 A idéia é ambígua e presta-se facilmente a justificações ideológicas: as conseqüências desfavoráveis da satisfação facilmente acessível foram, provavelmente, um dos mais poderosos instrumentos para a moralidade repressiva. Entretanto, no contexto da teoria de Freud, deduzir-se-ia que os "obstáculos naturais" no instinto, longe de negarem prazer, podem funcionar como um prêmio ao prazer, se estiverem divorciados dos tabus arcaicos e das coações exógenas. O prazer contém um elemento de autodeterminação, que é o indício concreto do triunfo humano sobre a necessidade cega:

A natureza não conhece o verdadeiro prazer, mas apenas a satisfação de carências. Todo o prazer é social — tanto nos impulsos não-sublimados como nos sublimados. O prazer tem sua origem na alienação. 3

O que distingue o prazer da cega satisfação de carências e necessidades é a recusa do instinto em esgotar-se na satisfação imediata, é a sua capacidade para construir e usar barreiras para a intensificação do ato de plena realização. Embora essa recusa instintiva tenha feito o trabalho de dominação, também pode servir à função oposta: erotizar as relações não-libidinais, transformar a tensão e alívio biológicos em livre felicidade. Deixando de ser empregadas como instrumentos para reter os homens em desempenhos alienados, as barreiras contra a gratificação absoluta converter-se-iam em elementos de liberdade humana; protegeriam aqueloutra alienação em que o prazer se origina — a alienação do homem, não de si mesmo, mas da natureza: sua livre auto-realização. Os homens existiriam como indivíduos, realmente, cada um deles moldando sua própria vida; defrontar-se-iam mutuamente com necessidades e modos de satisfação verdadeiramente diferentes — com suas próprias recusas e suas próprias seleções. A ascendência do princípio de prazer engendraria assim antagonismos, dores e frustrações — conflitos individuais na luta pela gratificação. Mas esses conflitos teriam, em si próprios, um valor libidinal: estariam impregnados da racionalidade de gratificação. Essa racionalidade sensual contém suas próprias leis morais.

A idéia de uma moralidade libidinal é sugerida não só pela noção freudiana de barreiras instintivas à gratificação absoluta, mas também pelas interpretações psicanalíticas do superego. Foi acentuado que o superego, como representante mental da moralidade, é, de um modo não-isento de ambigüidade, o representante do princípio de realidade, especialmente do pai proibitivo e punitivo. Em muitos casos, o superego parece estar em secreta aliança com o id, defendendo as reivindicações do id contra o ego e o mundo externo. Portanto, Charles Odier propôs que uma parte do superego é, "em última análise, a representante de uma fase primitiva, durante a qual a moralidade ainda não se emancipara do princípio de prazer”. 4 Aquele autor fala de uma "pseudomoralidade" pré-genital, pré-histórica e pré-edípica, anterior à aceitação do princípio de realidade, e denomina o representante mental dessa "pseudomoralidade" o superid. O fenômeno psíquico que, no indivíduo, sugere a existência de tal moralidade pré-genital é uma identificação com a mãe, expressando-se num desejo de castração, em vez de um medo de castração. Poderia ser a sobrevivência de uma tendência regressiva: a recordação do Direito Materno primordial e, ao mesmo tempo, um "meio simbólico contra a perda dos então prevalecentes privilégios da mulher". De acordo com Odier, a moralidade pré-genital e pré-histórica do superid é incompatível com o princípio de realidade e, portanto, é um fator neurótico.

Mais um passo na interpretação, e os estranhos _ vestígios do "superid" aparecem-nos como traços de uma realidade diferente e perdida, ou a relação perdida entre ego e realidade. A noção de realidade que é predominante em Freud e que está condensada no princípio de realidade "está vinculada ao pai". Confronta o id e o ego como uma força hostil e externa e, nessa conformidade, o pai é principalmente uma figura hostil, cujo poder está simbolizado no medo de castração, "dirigido contra a gratificação dos impulsos libidinais em relação à mãe". O ego em desenvolvimento atinge a maturidade ao submeter-se a essa força hostil: a "submissão à ameaça de castração" é o "passo decisivo no estabelecimento do ego, baseado no princípio de realidade”. 5 Contudo, essa realidade que o ego enfrenta como um poder externo antagônico não é a única realidade nem a primária. O desenvolvimento do ego é um desenvolvimento "afastado do narcisismo primário"; nesse estágio inicial, a realidade "não é externa, mas, pelo contrário, está contida no pré-ego do narcisismo primário". Não é hostil nem alheia ao ego, mas "está-lhe intimamente associada e, originalmente, nem se distingue do mesmo”. 6 Essa realidade é experimentada primeiro (e por último?) na relação libidinal da criança com a mãe — uma relação que, no começo, se situa dentro do "pré-ego" e só subseqüentemente se divorciou dele. E, com essa divisão da unidade original, desenvolve-se um "ímpeto para o restabelecimento da unidade original": um "fluxo libidinal entre o bebê e a mãe”. 7 Nesse estágio primário da relação entre "pré-ego" e realidade, os Eros narcisista e maternal parecem ser um único, e a experiência primária de realidade é a de uma união libidinal. A fase narcisista da pré-genitalidade individual "recorda" a fase maternal da história raça humana. Ambas constituem uma realidade a que o ego responde com uma atitude não de defesa e submissão, mas de integral identificação com o "meio". Mas à luz do princípio de realidade paternal, o "conceito maternal" de realidade que emerge aqui se converte imediatamente em algo negativo e terrível. O impulso para restabelecer a perdida unidade narcisista-maternal é interpretado como uma "ameaça", nomeadamente uma ameaça de "absorção maternal" pelo ventre irresistível. 8 O pai hostil é exonerado e reaparece como o salvador que, ao punir o desejo de incesto, protege o ego de seu aniquilamento na mãe. Não se levanta a questão de saber se a atitude narcisista-maternal, em relação à realidade, não pode "retornar" em formas menos primordiais e devoradoras, sob o poder do ego maduro e numa civilização madura. Pelo contrário, a necessidade de suprimir essa atitude de uma vez para sempre é aceita como fato axiomático. O princípio de realidade patriarcal mantém ascendência sobre a interpretação psicanalítica. Somente para além desse princípio de realidade é que as imagens "maternais" do superego transmitem promessas, em vez de vestígios de memória — imagens de um futuro livre, em lugar de um passado obscuro.

Contudo, mesmo que uma moralidade libidal-maternal seja identificável na estrutura instintiva, e ainda que uma racionalidade sensual pudesse tornar Eros livremente suscetível de ordem, um obstáculo profundamente íntimo parece, no entanto, desafiar todo e qualquer projeto de um desenvolvimento não-repressivo — nomeadamente, um vínculo que liga Eros ao instinto de morte. O fato brutal da morte nega redondamente a realidade de uma existência não-repressiva. Pois a morte é a negatividade final do tempo, mas "a alegria quer eternidade".

A intemporalidade é o ideal do prazer. O tempo não tem poder sobre o id, que é o domínio original do princípio de prazer. Mas o ego, por cujo intermédio, exclusivamente, o prazer se torna real, está em sua inteireza sujeito ao tempo. A mera previsão do fim inevitável, presente a todo instante, introduz um elemento repressivo em todas as relações libidinais e torna o próprio prazer doloroso. Essa frustração primária na estrutura instintiva do homem torna-se a fonte inexaurível de todas as outras frustrações — e de sua efetividade social. O homem aprende que "não pode durar, de qualquer modo", que todo o prazer é curto, que para todas as coisas finitas a hora de seu nascimento é a hora de sua morte — que não poderia ser de outro modo. Está resignado, antes da sociedade o forçar à prática metódica da resignação. O fluxo de
tempo é o maior aliado natural da sociedade na manutenção da lei e da ordem, da conformidade das instituições que relegam a liberdade para os domínios de uma perpétua utopia; o fluxo de tempo ajuda os homens a esquecerem o que foi e o que pode ser: fá-los esquecer o melhor passado e o melhor futuro.

Essa capacidade para esquecer — que em si mesmo já é o resultado de uma longa e terrível educação pela experiência — é um requisito indispensável da higiene mental e física, sem o que a vida civilizada seria insuportável; mas é também a faculdade mental que sustenta a capacidade de submissão e renúncia. Esquecer é também perdoar o que não seria perdoado se a justiça e a liberdade prevalecerem. Esse perdão reproduz as condições que reproduzem injustiça e escravidão: esquecer o sofrimento passado é perdoar as forças que o causaram — sem derrotar essas forças. As feridas que saram com o tempo são também as feridas que contêm o veneno. Contra essa rendição ao tempo, o reinvestimento da recordação em seus direitos, como um veículo de libertação, é uma das mais nobres tarefas do pensamento. Nessa função, o relembrar (Erinnerung) aparece-nos na conclusão da Fenomenologia do Espírito de Hegel; nessa função, aparece-nos na teoria de Freud. 9 Tal como a capacidade para esquecer, a capacidade para relembrar é um produto da civilização — talvez a sua mais vetusta e fundamental realização psicológica. Nietzsche viu no treino da memória o princípio da moralidade civilizada — especialmente, a memória de obrigações, contratos, compromissos. 10 Esse contexto revela a unilateralidade do treino da memória na civilização: a faculdade foi principalmente dirigida para a recordação de deveres, em lugar de prazeres; a memória foi associada à má consciência, à culpa e ao pecado. A infelicidade e a ameaça de punição, não a felicidade e a promessa de liberdade, subsistem na memória.

Sem libertação do conteúdo reprimido da memória, sem descarga do seu poder libertador, é inimaginável a sublimação não-repressiva. Desde o mito de Orfeu até à novelística de Proust, felicidade e liberdade têm estado associadas à idéia de reconquista do tempo: o temps retrouvê. A recordação recupera o temps perdu, que foi o tempo de gratificação e plena realização. Eros, penetrando na consciência, é movido pela recordação; assim, protesta contra a ordem de renúncia; usa a memória em seu esforço para derrotar o tempo num mundo dominado pelo tempo. Mas, na medida em que o tempo retém o seu poder sobre Eros, a felicidade é essencialmente uma coisa do passado. A terrível sentença que afirma que somente os paraísos perdidos são os verdadeiros julga e ao mesmo tempo resgata o temps perdu. Os paraísos perdidos são os únicos verdadeiros não porque, em retrospecto, a alegria passada pareça mais bela do que realmente era, mas porque só a recordação fornece a alegria sem a ansiedade sobre a sua extinção e, dessa maneira, propicia uma duração que de outro modo seria impossível. O tempo perde o seu poder quando a recordação redime o passado.

Entretanto, essa derrota do tempo é artística e espúria; o relembrar não constitui uma arma verdadeira, a menos que seja traduzido em ação histórica. Então, a luta contra o tempo passa a ser um momento decisivo na luta contra a dominação:

O desejo consciente de quebrar a continuidade da história pertence às classes revolucionárias, no momento de ação. Essa consciência afirmou-se durante a Revolução de Julho. Na tarde do primeiro dia da luta, simultânea mas independentemente, em muitos lugares, foram disparados tiros contra os relógios das torres de Paris.11

É a aliança entre o tempo e a ordem de repressão que motiva os esforços para sustar o fluxo de tempo, e é essa aliança que torna o tempo inimigo mortal de Eros. Certo, a ameaça do tempo, a passagem do momento de plenitude, a angústia sobre a aproximação do fim, podem tornar-se erotogênicas — obstáculos que "dilatam a maré da libido". Contudo, o desejo de Fausto, que conjura o princípio de prazer, exige não o momento de Beleza, mas a eternidade. Com a sua luta pela eternidade, Eros transgride o tabu decisivo que somente sanciona o prazer libidinal como uma condição temporal e controlada, não como um permanente manancial da existência humana. Com efeito, se a aliança entre tempo e ordem estabelecida se dissolvesse, a "natural" infelicidade privada deixaria de servir de apoio à infelicidade social organizada. O relegar da plena realização humana para a esfera da utopia deixaria de encontrar uma resposta adequada nos instintos
do homem, e o impulso para a libertação assumiria aquela força terrível que, na realidade, nunca tivera. Todas as razões sólidas estão do lado da lei e da ordem, quando insistem em que a eternidade da alegria está reservada para a "vida futura", assim como em seu esforço para subordinar a luta contra a morte e a doença aos requisitos intermináveis da segurança nacional e internacional.

A luta pela preservação do tempo no tempo, para a paralisação do tempo, para a conquista da morte, parece irracional a todos os títulos e francamente impossível sob a hipótese do instinto de morte que aceitamos. Ou será que essa mesma hipótese a torna mais razoável? O instinto de morte opera segundo o princípio do Nirvana: tende para aquele estado de "gratificação constante" em que não se sente tensão alguma — um estado sem carências. Essa tendência do instinto implica que as suas manifestações destrutivas seriam reduzidas ao mínimo, à medida que se aproximassem de tal estado. Se o objetivo básico do instinto não é a terminação da vida, mas da dor — a ausência de tensão — então, paradoxalmente, em termos do instinto, o conflito entre vida e morte é tanto mais reduzido quanto mais a vida se aproximar do estado de gratificação. O princípio de prazer e o princípio do Nirvana convergem então. Ao mesmo tempo, Eros, livre da mais-repressão, seria reforçado; e o Eros reforçado corno que absorveria o objetivo do instinto de morte. O valor instintivo de morte alterar-se-ia: se os instintos buscaram e atingiram sua realização numa ordem não-repressiva, a compulsão repressiva perderá muito de sua racionalidade biológica. Quando o sofrimento e a carência retrocedem, o princípio do Nirvana poderá reconciliar-se com o princípio de realidade. A atração inconsciente que impele os instintos de volta a um "estado anterior" seria eficazmente neutralizada pela desejabilidade do estado de vida atingido. A "natureza conservadora" dos instintos acabaria repousando num presente realizado em sua plenitude. A morte deixaria de ser uma finalidade dos instintos. Continua sendo um fato, talvez mesmo uma necessidade suprema — mas uma necessidade contra a qual a energia irreprimida da humanidade protestará, contra a qual deflagrará a sua maior batalha.

Nessa luta, razão e instinto podem unir-se. Nas condições de uma existência verdadeiramente humana, a diferença entre sucumbir à doença aos dez, trinta, cinqüenta ou setenta anos de idade e morrer de uma morte "natural" depois de uma vida plenamente realizada poderá muito bem ser uma diferença digna de que nos batamos por ela com toda a nossa energia instintiva. Não os que morrem, mas os que morrem antes de querer e dever morrer, os que morrem em agonia e dor, são a grande acusação lavrada contra a civilização. Também servem de testemunho para a culpa irredimível da humanidade. A morte deles suscita a dolorosa consciência de que foi desnecessária, de que poderia ter sido de outra maneira. São precisos todos os valores e instituições de uma ordem repressiva para pacificar a má consciência dessa culpa. Uma vez mais, a profunda ligação entre o instinto de morte e o sentimento de culpa torna-se evidente. O silencioso "acordo profissional" com o fato da morte e da doença é, talvez, uma das mais profusamente divulgadas expressões do instinto de morte — ou, melhor, de sua utilidade social. Numa civilização repressiva, a própria morte torna-se um instrumento de repressão. Quer a morte seja temida como uma constante ameaça ou glorificada como supremo sacrifício ou, ainda, aceita como uma fatalidade, a educação para o consentimento da morte introduz um elemento de abdicação na vida, desde o princípio — abdicação e submissão. Sufoca os esforços "utópicos". Os poderes vigentes revestem-se de uma profunda afinidade com a morte; a morte é um símbolo de escravidão, de derrota. A Teologia e a Filosofia concorrem hoje entre si na celebração da morte como uma categoria existencial: pervertendo um fato biológico para torná-lo uma essência ontológica, concedem suas bênçãos transcendentais à culpa da humanidade que ambas ajudam a perpetuar; assim atraiçoam a promessa de utopia. Em contraste, uma Filosofia que não trabalha como a dama-de-companhia da repressão reage ao fato da morte com a Grande Recusa — a recusa de Orfeu, o libertador. A morte pode tornar-se um símbolo de liberdade. A necessidade de morte não refuta a possibilidade de libertação final. Tal como as outras necessidades — pode-se tornar também racional, indolor. Os homens podem morrer sem angústia se souberem que o que eles amam está protegido contra a miséria e o esquecimento. Após uma vida bem cumprida, podem chamar a si a incumbência da morte — num momento de sua própria escolha. Mas até o advento supremo da liberdade não pode redimir aqueles que morrem em dor. É a recordação deles e a culpa acumulada da humanidade contra as suas vítimas que obscurecem as perspectivas de uma civilização sem repressão.

Notas

1 "The Most Prevalent Form of Degradation in Erotic Life", em Collected Papers (Londres: Hogarth Press, 1950),_ IV, 213.
2 lbid., pág. 214.
3 Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, Dialeklik der Aufklârung (Ames-: Querido Verlag, 1947), pág. 127.
4 om Über-Ich", em Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, XII (1926), 280-281.
5 Hans W. Loewald, "Ego and Reality", em International Journal of Psychoanalysis, Vol. XXXII (1951), Parte I, pág. 12.
6 Ibid.
7 Ibid., pág. 11.
8 Ibid., pág. 15.
9 Ver o capítulo 1.
10 Genealogia da Moral, Parte II, 1-3.
11 Walter Benjamin, "Über den Begriff der Geschichte", em Die Neue Rundschau (1950), pág. 568.





Por Herbert Marcuse em "Eros e Civilização - Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud", 8ª Edição,tradução de Álvaro Cabral Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1978, capítulo XI (p.188-1990. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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